sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Três tempos






Amanhã vamos morar bem longe e não quero esquecer isso. É que quando o Lipe, meu mano, nasceu  ganhei uma gaitinha de boca. Primeiro não entendi. Soprei pra lá e pra cá, depois toquei num canto. É que o Lipe nunca gostou da minha música. Cheguei a pensar que o presente era para incomodar mesmo, coisa de irmãos, até que a mãe falou firme assim - Lia, querida, vai tocar lá fora. Aí comecei a sentar na escadinha ali da porta da frente. A dona Maria passava e sorria e balançava a cabeça.Outro dia até atiraram uma moeda. E a música virou profissão. Comecei a tocar sempre no mesmo horário para ver se recebia meu pagamento, mas moedinha nunca mais. No fim da tarde ia lá soprar música mesmo assim, pra quem quer que fosse, menos pro Lipe que começava a chorar.

Um dia, um menino com roupa de brincar na terra, ficou remexendo na lixeira, acho que ele tinha perdido alguma coisa, sei lá. Continuei a tocar, daí, uma hora, ele parou e sentou encostado no poste de luz. Acho que estava descansando. No tarde seguinte, ele passou por ali de novo, deu uma olhada para dentro da lixeira e sentou encostado no poste de luz, de certo para descansar. Isso aconteceu de novo e de novo e de novo, várias vezes. No fim de tarde, ele sempre descansava ali,encostado no poste de luz, e eu na escada, soprando música. Teve um outro dia, assim com o céu meio verde de fim de tarde depois de chuva, achei que ele nem ia passar por ali, só que, do nada, ele apareceu e sentou no mesmo lugar e sorriu para mim, talvez quisesse mostrar a janelinha. Devolvi um sorriso escondido atrás da gaitinha. Essa era uma das melhores horas do dia, quase melhor do que a da sobremesa. Olhava pela janela par ver quando o céu começava a ficar colorido. Era fim de tarde, início de música, só que hoje foi fim de música, quer dizer, da minha música na escadinha, porque amanhã vamos morar bem longe.

Quando o menino de roupa de brincar no barro apareceu, toquei mais um pouco e me levantei. Caminhei em direção ao poste de luz. Estiquei o braço com a gaitinha. Ele arregalou os olhos. Expliquei - É pra você. Ele pegou a gaitinha. Continuei - é que vou morar bem longe dessa escadinha, aí não vou mais tocar aqui essa hora. Ele perguntou - Não vai sentir falta? Perguntei - De  tocar aqui? E ele disse - É... Fiz que sim. E da gaitinha? - ele quis saber. Suspirei: Nem tanto.


*     *     *

- Como comecei a tocar? Ah, foi meio engraçado. Eu era acostumado a achar as coisas e pegar, sabe?  E as pessoas descartam cada coisa! Um dia achei um daqueles disquinhos de uma música só, guardei. Nunca ouvi a tal da música, porque não tinha o aparelho, mas guardei comigo. Bom, mas com a gaitinha foi diferente, ela não caiu do caminhão de mudança.

- É, foi um presente, de uma menina. Se eu te contar é capaz de dizer que é coisa de filme, de novela, sei lá, mas aconteceu – o que posso fazer?  Essa menina, ela era bem desafinada mesmo, sempre à procura do tom. Quando vi aquela criatura tocando gaitinha de boca, toda miúda em frente a um casarão, tive que parar. Fiquei ali ouvindo. Logo percebi que ela me viu e continuou a tocar como se fosse para uma multidão. No outro dia, voltei. E no outro também. Assim foi até que ela teve que se mudar. 

- Sim, mas como eu disse, não deixou cair a gaitinha do caminhão de mudança. Ela me entregou. Não sei se dá para dizer que foi um presente, mas também não foi um simples descarte. Enfim, ela disse que sentiria menos falta da gaitinha do que de tocar ali e, quem sabe, daquela multidão que eu formava com um único par de ouvidos.

*     *     *

Aquela gaitinha era menos um presente do que uma tentativa de contornar o ciúme – afinal, não é nada fácil deixar de ser o bebê da casa. O objeto acabou por abrir portas, já que a Lia queria tocar assim, para fora mesmo, toda aquela música. Tocou. E mais: foi ouvida com uma atenção por pouco inesperada. Depois, aguardada.
E para o Carlos, bom, nem preciso falar quantas portas abertas resultaram daquela gaitinha em suas mãos. Ele não costumava passar por aquela rua, mas depois de ver a cena da menina com ares de artista, mudou de rota. E o fim de tarde passou a ser um interlúdio na volta, sem pressa, para a casa. E quando Lia se mudou as coisas não voltaram a ser como eram antes. Ela já não morava mais ali, mas as músicas ao entardecer continuaram.

Tomara que a Lia consiga sair mais cedo do trabalho hoje, para cumprir o que prometeu ao Nando, de irem à praça. Ela teria uma surpresa agradável.  Além disso, o filhinho deles, quando escuta uma canção, bate palminhas. Como sempre digo: o Tom é uma graça!