quarta-feira, 15 de julho de 2009

Mais alguma coisa?


Pergunta trivial essa, ao final de cada compra o atendente, a moça do caixa, pergunta: Mais alguma coisa? E não raro acrescentamos mais isso ou aquilo. Constantemente nos falta alguma coisa. Será mesmo uma coisa?

Um vídeo que tem circulado na internet, A História das Coisas, trata justamente do insaciável desejo por coisas, o qual é estimulado a fim de manter o nosso sistema de produção e consumo, que, por sua vez, é insustentável. Ao que parece, o grande segredo para manter a economia está em desenvolver produtos que se tornem rapidamente obsoletos, tanto por não funcionarem mais, quanto por parecerem antiquados, fora de moda, atrasados. Assim, manter as pessoas insatisfeitas com o que têm e com o que são, mostrando a elas que a solução está em produtos é um grande negócio - o difícil é saber para quem. Mais alguma coisa?

Manter o atual sistema: extração – produção industrial – comércio – consumo – lixo, massificado e a cada dia mais acelerado, requer a exploração de pessoas, a liberação de grande quantidade de tóxicos, o desgaste da natureza, a disputa por matéria prima, o aumento do lixo e a falta de lugar para depositá-lo. E, tudo isso para quê? Coisas. Para quem? Para pessoas que passam cada vez mais tempo trabalhando, assistindo propagandas, comprando, endividando-se, e trabalhando mais, e desejando ainda mais, e comprando mais, enquanto que, de acordo com pesquisas, vivendo menos felizes. E, viva a insatisfação! Mais alguma coisa?

Um sorriso – essa foi a melhor resposta que já ouvi para tal pergunta, e não foram poucas as vezes que a fiz enquanto trabalhei como caixa de supermercado. Em meio a tantas coisas, falta-nos sorrisos. Como concluiu Eric Hoffer, escritor norte-americano que estudou os movimentos de massa: você nunca consegue o suficiente daquilo que não precisa para torná-lo feliz. E, então, mais alguma coisa?

Vertigem

Com as chaves na mão, estava pronta para abrir a porta. Elevou o olhar e, lá estava o enfeite que eles haviam demorado a escolher, ainda lembrava do outro, era mais bonito, mas o dizer, enfim, era o mesmo, bem vindo. Não, pensou, melhor bater primeiro. O som amadeirado, oco, fechado, ressoou. Ninguém respondeu. Já não se sentia mais bem vinda. Na verdade, por que, mesmo, estava ali?

Precisava abrir aquela porta. Grande parte de sua vida estava trancada do outro lado daquele trinco. Girou. Abriu. Nem precisou usar a chave. Quantas vezes ainda vou, ou melhor, tive que lembrar o Senhor de chavear as portas? E se um ladrão... Que cheiro horrível! Um cheiro de flores mortas, de sonhos murchos, de verduras podres na fruteira, de esquecimento, de louça suja empilhada, de desinteresse, de toalha molhada, de frustração, invadiu suas narinas, inflou seu peito. Vertigem. E o que estava trancado, guardado, chaveado, veio à tona.

O desgosto saiu pela boca - amargo - no lugar de palavras nunca ditas, e formou, no chão, uma poça. Encarou-a de frente. Suor frio. Suspiro. Alívio. Só então percebeu que o Senhor segurava os seus cabelos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O Quarteirão




No meio do caminho, tinha uma pedra.
Tinha uma pedra no meio do caminho. 
 - Carlos Drummond de Andrade



Ele era um pão: casca e miolo, para os outros, muito mais casca do que miolo. Não arriscava falar muito, ou quase nada, se abria a boca, cuidava para não deixar escapar algo que pudesse ser levado mais a sério do que uma piada. Ele era de muitos amigos, de muitas festas, de muita solidão. Sempre acompanhado, andava muito sozinho. Ele queria encontrar alguém para dividir a cama, como faziam os amigos, mas precisava mesmo de alguém para dividir os sonhos.

Ela era uma bala cítrica: levemente ácida. Se tivesse a oportunidade, era capaz de, com palavras suaves, podar qualquer um, sem quebrar, sem machucar. Com perguntas, era capaz de desfazer nós, abrir cabeças. Ela era de poucos amigos, o suficiente, jamais sentia solidão. Procurava, mesmo assim, alguém para dividir o guarda-chuva, abraçada, quando o mundo parecesse desabar.

Eles caminhavam pelas calçadas opostas do mesmo quarteirão. Era inverno – o dia cinza, o vento cortante. Ela vestia um blusão vermelho e uma bolsa de couro, ele um casaco preto e uma touca. Ela passou pela livraria, pelo restaurante, ele, pela farmácia, pelo prédio antigo da esquina. Começou a chover. Ela parou para abrir o guarda-chuva. Ele seguiu andando. Molhado, a viu pela primeira vez. Ela não conseguia abrir o guarda-chuva. Ele decidiu se aproximar, tremia, hesitante - nunca havia feito algo assim antes.

Ele roubou a bolsa, saiu correndo. Ela pasma, ficou parada, sem ação, sem palavras, sem a bolsa, apenas com o guarda-chuva. Ele, em outras circunstâncias, poderia ter lhe roubado o coração, mas ali estava a serviço do seu novo amor: pedras brancas.

Meses depois, no mesmo quarteirão, levou uma facada fatal, dilacerado, morreu por uma pedra - a pedra branca da qual não conseguia viver sem. Amor trágico, não correspondido. Era apenas mais um.