terça-feira, 22 de dezembro de 2009

No Xerox - Postagem Temática



Abri a tampa pela trigésima quarta vez naquela noite. Ficara até mais tarde para terminar as cópias no prazo. Acostumado ao trabalho simples e repetitivo, não esperava ser atingido pela luz da máquina daquele jeito - bem dentro dos olhos. Senti uma ardência muito forte. Esfreguei os olhos. Pisquei. Abri os olhos. O que é isso? Arregalei os olhos. Não acreditei no que vi.

Tudo a minha volta desbotara. Apenas via os traços pretos em um fundo branco, como rabiscos em folha de ofício. Lembrei das tirinhas que lia no livro de português. Estou dentro de uma – pensei, o que me fez rir. Continuei rindo de nervoso. Esfreguei os olhos. Fechei. Abri.

Tudo igual. Olhei para a pilha de cópias. Depois olhei para as paredes da sala pequena, entulhada, sufocante, para as fotos coladas, para as minhas mãos: somente traços em preto e branco. O que eu faço?

Lembrei da pilha de cópias. Preciso terminar isso. Cópias coloridas. O cartucho de tinta está no fim. E agora?

Tudo branco e preto.

Onde foram parar meus lápis de cor?



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segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Corredor Azul

Minha vez. Abro a porta com cuidado. Carrego o coração apertado pelo caminho silencioso. No final do corredor azul, o encontro: ele deitado, olhos fechados, tubos e máquinas. O relógio na parede chama atenção: parado, imóvel, como o vô, eu e o tempo neste instante.

Penso em algo bonito para dizer. Serão as últimas palavras? O último diálogo? Ele vai ouvir? Parece dormir tão profundamente. Isso é um diálogo? Chego mais perto, toco de leve a mão imóvel. Tenho a impressão de ser tão frágil que desmancharia se eu apertasse.

Coragem! Abro a boca para dizer eu te amo, percebo, então, o nó que amarra a voz e a emoção na minha garganta. Espremo algumas palavras. Mal ouço o que acabo de dizer. Com um suave carinho e um olhar, despeço-me. O relógio continua a congelar o tempo.

De volta ao solitário corredor azul, mais alguns passos, abro a porta. Encaro a sala de espera sem cadeiras, sem conforto, ansiedade apenas. Desse lado, há os que contam os minutos, o horário de visita dura pouco, enquanto que, do outro, permanecem os que pararam no tempo.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Folhas de Outono




O ar estava úmido, o chão, molhado, o céu, branco, o parque, quase vazio. Ao que parece, a maioria das pessoas prefere ficar em casa em manhãs como essa. Decidi, então, juntar-me à maioria.

Meus planos foram adiados diante daquela cena: um casal de velhinhos caminhando. Eles andavam tão perto um do outro e no mesmo ritmo, que pareciam dançar uma música lenta, em um movimento semelhante ao das folhas que caíam ao seu redor.

Ele, um senhor, com um tom de mogno envelhecido, vestindo um chapéu, também antigo, com sua voz rouca, cantava: I see trees of green, red roses too, I see them bloom for me and you... tão convencido como alguém que, de fato, estivesse vendo tudo aquilo.

Ela, uma senhora charmosa, usando óculos escuros em um dia sombrio, ouvia a música e sorria como alguém que também estivesse vendo tudo aquilo. Provavelmente, repetia consigo: what a wonderful world!

Enquanto ele pintava aquele mundo maravilhoso com a voz, ela o tricotava com a mente. Que obra de arte! Não havia pressa. Eles não estavam fugindo, nem preocupados em chegar cedo. Apenas caminhavam. E faziam isso juntos.

O nome dele era Alfredo. Costumava adormecer tão facilmente e roncar tão alto que ela tinha que cutucá-lo várias vezes durante a noite. Também, vivia esquecendo favores, como regar as plantas, e datas importantes. Isso era irritante, mas ela apreciava ser sua memória quase todo o tempo.

O nome dela era Elen. Costumava reclamar muito, porque fazia tantos planos que era comum parte deles ser frustrada, e, como eram muitos, isso acontecia com freqüência. Também vivia pedindo para que Alfredo lesse para ela, e podia ser muito teimosa se ele não quisesse. Isso era irritante, mas ele apreciava ser seus olhos quase todo o tempo, ao menos, era o que estava escrito nos seus quando o fazia.

Alfredo e Elen tiveram um longo casamento, algumas brigas, muitas caminhadas e a wonderfull world, até o dia em que, como aquelas folhas de outono, eles, suavemente, tocaram o chão.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Cúmplices


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- De que sabor vocês querem?
Silêncio
- Rúcula com tomate seco!
Risos
- Tá certo então. De que mais?
-Tanto faz.
- Estrogonofe.
- Essa é boa.
-Calabresa.
- Clássica!
- Sim! Sempre!
- Brócolis com catupiry.
- Não!
- Ta, então, ficou estrogonofe, calabresa e rúcula com tomate seco para ele ali.
- Claaaaro!
Risos.
- Será que o teu pai vai encomendar a de rúcula mesmo?
- Não, acho que não.
- Ele viu que era brincadeira.
- Vamos terminar de ver o filme.
-Ótimo, por sinal.
-Ah, para, é bom.
- Bom pra dormir.
- Shhh!
O brilho da televisão ilumina rostos atentos, risadas, e caras de sono, olhos fechados.
- A pizza chegou!
- Acorda!
- Ai que fome!
Aproximam-se da mesa.
Com um sorriso nos lábios, o engraçadinho murmura:
- Ah, não! Rúcula com tomate seco...
Risos contidos.
Sentam-se em volta das tão esperadas circunferências.
-Essa aqui é especial para ti.
O pai simpático alcança para o amigo do filho.
- Não, obrigado.
Recusa rindo, sem graça.
- Mas a gente encomendou especialmente pra ti.
- Pois é... ahm... Eu tava brincando...
Explica, vermelho como os tomates secos.
Silêncio constrangedor.
- Então ela vai comer tudo sozinha.
- Melhor! É muito boa essa pizza!
- Sério?
-Sim! Por isso que eu pedi.
Esclarece a irmã do amigo.
Risos. Gargalhadas também.
Anos depois da digestão daquela noite, encontram-se em uma pizzaria. Há tempo que não se viam. Ela, pelo visto, andou comendo muitas pizzas, está enorme. E, radiante. Enorme e radiante. Será que está grávida? Distraída, como sempre, nem nota que ele está ali. Sei que estou um pouco diferente, a barba crescida,a barriga também, mas não irreconhecível. O lugar está agitado. Rodízios são sempre agitados. Aproxima-se para dar um oi. Chega ao mesmo tempo em que o garçom anuncia:
- Rúcula com tomate seco!
Fitam-se. O sorriso com o canto direito da boca não nega: cúmplices. Cúmplices da mesma noite de filme, da mesma pizza, da mesma amizade. Cúmplices para a vida toda. Sim, para a vida toda.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Trim !


O resultado está para sair. O resultado está para sair. Por mais que a vontade seja de engavetá-lo em sua mente, o pensamento permanece pairando por ali, voando baixinho, à espera do mínimo sinal – trim!- para se esticar e tomar conte de todo o espaço possível: O RESULTADO! Torna-se uma sirene vermelha, piscante, barulhenta e, ao que parece, eletrizada. O telefone toca com o mesmo trim de sempre, mas o efeito é o de um leve choque, forte o suficiente para que Sara pule do sofá e corra para atender.

Emília se mexe na cama. Ela também ouve o trim, não com o mesmo efeito. Desperta, apenas, de um leve sono. Volta a sentir-se exaurida de forças. Pensa em levantar, mas o corpo se perde entre o colchão e as cobertas, como um ursinho de pelúcia, incapaz de mover-se por conta própria. Fica ali. Um ouvido tocando o travesseiro, o outro ouvindo atentamente.

Um grito. Solavancos no andar de cima. Um susto no andar de baixo.

A senhora sente o corpo tremer. Um arrepio percorre a espinha. Precisa levantar. Ergue o corpo amolecido pela cama mais rápido do que supunha. Nem mesmo calça o chinelo de lã. Está decidida. Precisa verificar o que está acontecendo, e o mais rápido possível. Caminha em direção à porta, com o seu pijama de cerejinhas, presente da Nina. Aquele grito bem poderia ser dela, sua neta, ou de outra moça em apuros. Segue, a respiração é sonora, mas pouco eficiente. Precisa sair daquele quarto. Gira o trinco. Abre. A claridade do corredor perturba a visão.

A moça vinha escada a baixo. Era a Sara.

Encaram-se. Emília está pálida, Sara, radiante. Que alívio. A senhora sente um banho de água morna por dentro. O conforto derrete suas forças. Estica o braço para se segurar. A parede está mais longe do que o imaginado. Vai tombar. A moça corre ao seu encontro, e a segura. Obrigada – sussurra a senhora em seu ouvido. Um abraço demorado.

Há quanto tempo não era envolta por braços em vez de cobertas? Alegria. Sente o coração acelerado da jovenzinha. Mas, afinal, o que havia acontecido? Susto. Está tudo bem. Sara precisa contar a boa notícia. Emília precisa ouvir algo bom. E o que fez a moça pular e gritar transborda em palavras para os ouvidos amassados da vó Mia. Mas que coisa boa, menina! Lágrimas. Os olhos brilham mais uma vez. A última? Quem sabe. É a primeira que pulam juntas sem sair do chão.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Mais alguma coisa?


Pergunta trivial essa, ao final de cada compra o atendente, a moça do caixa, pergunta: Mais alguma coisa? E não raro acrescentamos mais isso ou aquilo. Constantemente nos falta alguma coisa. Será mesmo uma coisa?

Um vídeo que tem circulado na internet, A História das Coisas, trata justamente do insaciável desejo por coisas, o qual é estimulado a fim de manter o nosso sistema de produção e consumo, que, por sua vez, é insustentável. Ao que parece, o grande segredo para manter a economia está em desenvolver produtos que se tornem rapidamente obsoletos, tanto por não funcionarem mais, quanto por parecerem antiquados, fora de moda, atrasados. Assim, manter as pessoas insatisfeitas com o que têm e com o que são, mostrando a elas que a solução está em produtos é um grande negócio - o difícil é saber para quem. Mais alguma coisa?

Manter o atual sistema: extração – produção industrial – comércio – consumo – lixo, massificado e a cada dia mais acelerado, requer a exploração de pessoas, a liberação de grande quantidade de tóxicos, o desgaste da natureza, a disputa por matéria prima, o aumento do lixo e a falta de lugar para depositá-lo. E, tudo isso para quê? Coisas. Para quem? Para pessoas que passam cada vez mais tempo trabalhando, assistindo propagandas, comprando, endividando-se, e trabalhando mais, e desejando ainda mais, e comprando mais, enquanto que, de acordo com pesquisas, vivendo menos felizes. E, viva a insatisfação! Mais alguma coisa?

Um sorriso – essa foi a melhor resposta que já ouvi para tal pergunta, e não foram poucas as vezes que a fiz enquanto trabalhei como caixa de supermercado. Em meio a tantas coisas, falta-nos sorrisos. Como concluiu Eric Hoffer, escritor norte-americano que estudou os movimentos de massa: você nunca consegue o suficiente daquilo que não precisa para torná-lo feliz. E, então, mais alguma coisa?

Vertigem

Com as chaves na mão, estava pronta para abrir a porta. Elevou o olhar e, lá estava o enfeite que eles haviam demorado a escolher, ainda lembrava do outro, era mais bonito, mas o dizer, enfim, era o mesmo, bem vindo. Não, pensou, melhor bater primeiro. O som amadeirado, oco, fechado, ressoou. Ninguém respondeu. Já não se sentia mais bem vinda. Na verdade, por que, mesmo, estava ali?

Precisava abrir aquela porta. Grande parte de sua vida estava trancada do outro lado daquele trinco. Girou. Abriu. Nem precisou usar a chave. Quantas vezes ainda vou, ou melhor, tive que lembrar o Senhor de chavear as portas? E se um ladrão... Que cheiro horrível! Um cheiro de flores mortas, de sonhos murchos, de verduras podres na fruteira, de esquecimento, de louça suja empilhada, de desinteresse, de toalha molhada, de frustração, invadiu suas narinas, inflou seu peito. Vertigem. E o que estava trancado, guardado, chaveado, veio à tona.

O desgosto saiu pela boca - amargo - no lugar de palavras nunca ditas, e formou, no chão, uma poça. Encarou-a de frente. Suor frio. Suspiro. Alívio. Só então percebeu que o Senhor segurava os seus cabelos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O Quarteirão




No meio do caminho, tinha uma pedra.
Tinha uma pedra no meio do caminho. 
 - Carlos Drummond de Andrade



Ele era um pão: casca e miolo, para os outros, muito mais casca do que miolo. Não arriscava falar muito, ou quase nada, se abria a boca, cuidava para não deixar escapar algo que pudesse ser levado mais a sério do que uma piada. Ele era de muitos amigos, de muitas festas, de muita solidão. Sempre acompanhado, andava muito sozinho. Ele queria encontrar alguém para dividir a cama, como faziam os amigos, mas precisava mesmo de alguém para dividir os sonhos.

Ela era uma bala cítrica: levemente ácida. Se tivesse a oportunidade, era capaz de, com palavras suaves, podar qualquer um, sem quebrar, sem machucar. Com perguntas, era capaz de desfazer nós, abrir cabeças. Ela era de poucos amigos, o suficiente, jamais sentia solidão. Procurava, mesmo assim, alguém para dividir o guarda-chuva, abraçada, quando o mundo parecesse desabar.

Eles caminhavam pelas calçadas opostas do mesmo quarteirão. Era inverno – o dia cinza, o vento cortante. Ela vestia um blusão vermelho e uma bolsa de couro, ele um casaco preto e uma touca. Ela passou pela livraria, pelo restaurante, ele, pela farmácia, pelo prédio antigo da esquina. Começou a chover. Ela parou para abrir o guarda-chuva. Ele seguiu andando. Molhado, a viu pela primeira vez. Ela não conseguia abrir o guarda-chuva. Ele decidiu se aproximar, tremia, hesitante - nunca havia feito algo assim antes.

Ele roubou a bolsa, saiu correndo. Ela pasma, ficou parada, sem ação, sem palavras, sem a bolsa, apenas com o guarda-chuva. Ele, em outras circunstâncias, poderia ter lhe roubado o coração, mas ali estava a serviço do seu novo amor: pedras brancas.

Meses depois, no mesmo quarteirão, levou uma facada fatal, dilacerado, morreu por uma pedra - a pedra branca da qual não conseguia viver sem. Amor trágico, não correspondido. Era apenas mais um.